Tuesday, March 14, 2006

Aula 14 de Março: Aparência e realidade I

    O SURGIMENTO DA FILOSOFIA MODERNA COMO RESPOSTA AOS PROBLEMAS TEÓRICOS IMPOSTOS PELA NOVA CIÊNCIA1

1. As origens da ilusão

Refletir acerca da relação entre o mundo como o percebemos, e o mundo como é nele mesmo, não é uma atividade exclusiva dos filósofos. Basta nos damos conta de que somos seres dotados de capacidades perceptuais limitadas, para que surjam dúvidas sobre a confiabilidade de nossos sentidos. Exemplos que demonstram essa limitação:

  • Águias podem enxergar mais longe, cães farejar melhor, e morcegos ouvir mais;

  • Nos enganamos com freqüência em nossos juízos perceptuais (e.g., torre quadrada/redonda, bastão reto/torto);

  • Ilusões e alucinações (oásis no deserto);


Essas constatações óbvias e trivias podem dar origem a questões bastante enigmáticas:

  • Será que a percepção revela o mundo como realmente é, ou apenas como parece ser?

  • Será que ele parece diferente a criaturas dotadas de uma sensibilidade muito distinta da nossa?

  • Se é assim, será que podemos determinar como o mundo é independentemente de nós? Ou estamos para sempre escondidos atrás de um véu de aparências, isolados da apreensão direta do mundo como ele é nele mesmo?


2. A contribuição da ciência

A partir dos séculos XVI e XVII, com a revolução científica moderna e os progressos obtidos na explicação do mundo natural, essas questões foram trazidas para o âmbito de um novo campo de força, e a relação aparência / realidade começou a ser tomada como equivalente à relação entre a caracterização ordinária / científica do mundo. Nessa época, a maior parte dos cientistas e filósofos passaram a sustentar que os resultados da ciência moderna entravam em conflito com a experiência mundana. O mundo, nos disseram eles, parece multi-colorido, cheio de sons e odores, quente ou frio, mas na realidade é apenas um conjunto de partículas invisíveis e incolores, de ondas de ar ou radiação eletromagnética. Surgia assim a doutrina da subjetividade das qualidades secundárias, que se tornaria uma característica central e permanente do pensamento ocidental.

A imagem que vem na esteira dessa doutrina é de fato bastante estranha, pelo menos para um ouvido ainda não calejado pelas explicações científicas: é como se um abismo impossível de ser vencido estivesse sendo criado entre o mundo como o percebemos e o mundo como é nele mesmo. A origem dessa imagem no pensamento moderno encontra-se sobretudo nos escritos de Galileu Galilei, especialmente em O Ensaiador. Quando concebemos substâncias materiais, argumenta Galileu nessa obra, pensamos nelas como sendo limitadas, com certa figura e tamanho, ocupando certa posição no espaço e no tempo, estando em movimento ou repouso, em contato ou não com outros corpos, como sendo uma ou várias. Todavia, continua ele, não há necessidade alguma de que concebamos os corpos materiais como coloridos, sonoros, saborosos ou fragrantes. A partir dessas considerações ele conclui que:

cores, sons, sabores e odores, na medida em que sua existência objetiva está em questão, não são nada além de meros nomes para algo que reside exclusivamente em nosso corpo sensitivo, de modo que se a criatura percipiente fosse removida, todas aquelas qualidades poderiam ser aniquiladas e abolidas da existência. É apenas porque nós demos nomes especiais a estas qualidades, diferentes dos nomes que nós demos às propriedades primárias e reais, que somos tentados a acreditar que as primeiras realmente e verdadeiramente existem da mesma forma que as últimas.


Um segundo tipo de argumento que podemos encontrar na obra de Galileu visando demonstrar a tese da subjetividade das qualidades secundárias é o que parte da análise de um caso de experiência perceptual, sob o ponto de vista da explicação causal do funcionamento de nossa sensibilidade. O caso fornecido para análise é o de uma pluma sendo passada sobre um corpo qualquer – seja ele sensitivo ou não. Galileu chama atenção para o fato de que, tanto no caso de um corpo sensitivo, quanto no caso de um corpo inanimado, o movimento mecânico da pluma deverá ser exatamente o mesmo. Mas no caso de um sujeito sentiente, ao passar a pluma sob suas narinas ou sobre seus olhos, inevitavelmente se produzirá como efeito uma coceira quase insuportável. D
isso segue-se, segundo Galileu, que a coceira é meramente um estado subjetivo nosso, tanto que se o nosso corpo fosse removido nada mais restaria para ser sentido, além da mesma ação mecânica que ocorre com objetos inanimados. Essa ação mecânica, portanto, é tudo que realmente ou objetivamente existe. O próximo passo é estender estas conclusões a todas as outras "qualidades secundárias". Assim temos que o calor, por exemplo, não passa de uma multiplicidade de partículas com figura, número, movimento, poder de penetração e contato, e mais nenhuma qualidade que possamos chamar de 'calor'. Sons são produzidos em nós e sentidos quando uma rápida vibração de partículas de ar causa movimento de nosso canal auditivo. A percepção visual das cores ocorre de modo similar, devido ao impacto de certas partículas ou ondas sobre nossos olhos, e assim por diante. A conclusão, portanto, é a de que independentemente do sujeito percipiente nada no mundo pode ser considerado como objetivamente quente ou frio, colorido, fragrante ou sonoro. 

1Baseado no capítulo 1 de Appearance and Reality (AR), de Peter Hacker (Basil Blackwell, Oxford, 1987, pp. 1--52).

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